Comentário à sentença da Corte Interamericana sobre o Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara contra Brasil

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Eduardo Baker

Ex Coordenador de Justiça Internacional da Justiça Global, uma das organizações peticionárias do caso comentado neste artigo. Atualmente, defensor público e coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial e Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais da Defensoria Pública de São Paulo.

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No dia 13 de março de 2025, quase 24 anos após seu envio ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Corte notificou sua sentença no caso Comunidades Quilombolas de Alcântara v. Brasil. No caso, a Corte Interamericana (Corte IDH) reconheceu violações aos direitos à propriedade coletiva, à consulta livre, prévia e informada, ao projeto de vida coletiva, dentre outros, além de reconhecer o quadro de discriminação estrutural contra as comunidades quilombolas no Brasil.

Essa é a primeira sentença da Corte IDH que trata de comunidades quilombolas, mas podemos inseri-la na série de decisões que reconhece o caráter de comunidade tradicional a agrupamentos de descendentes de pessoas escravizadas, como já havia feito nos casos envolvendo os Garífuna de Honduras e os Marrons do Suriname.

O resumo oficial e a íntegra da sentença estão disponíveis aqui, portanto não entrarei em muitos detalhes sobre os fatos do caso, centrando nos aspectos jurídicos da decisão. Resumidamente, o caso trata dos direitos de 171 comunidades quilombolas, localizadas no Município de Alcântara, no Estado brasileiro do Maranhão, impactadas pela decisão de se estabelecer uma base militar no seu território durante o regime militar, o que levou ao deslocamento forçado de 31 dessas comunidades e gerou impactos nos direitos de todas as comunidades quilombolas de Alcântara. A Corte também analisou direitos não diretamente relacionados ao deslocamento, como indicado acima.

O caso possui uma peculiaridade, qual seja o reconhecimento parcial da responsabilidade internacional pelo Estado, seguido pela assinatura de um acordo entre o Brasil e representantes das vítimas, prevendo a obrigação de titular 78.105 hectares do território tradicional. O reconhecimento não era comum em casos envolvendo o Brasil, mas, recentemente, parece ter havido uma mudança de postura e tais atos se tornaram mais frequentes. Nesse caso, o reconhecimento se limitou ao dever de titulação do território tradicional quilombola e à demora administrativa e judicial em garantir tal direito. Com o reconhecimento, o país argumentou que não seria necessário outorgar reparações, listando medidas que já estariam em andamento – argumento que não foi acolhido pela Corte IDH.

Dentre as cinco exceções preliminares apresentadas pelo Estado, me limitarei a tratar da exceção ratione temporis. As demais são exceções usualmente apresentadas pelo Brasil e reiteradamente rejeitadas pela Corte IDH, no que entendo ser dispensável sua análise. São elas: incompetência ratione materiae para tratar de direitos econômicos, sociais e culturais; inadmissibilidade do caso por publicação prévia do Relatório de Mérito; não esgotamento dos recursos internos; e inadmissibilidade do escrito de solicitações, argumentos e provas, por ausência de representação adequada. Apenas essa última diverge do conjunto usual de exceções apresentadas pelo Brasil, porém me parece de menor interesse para nossa discussão.

Tendo como marco a aceitação da competência contenciosa pelo Brasil, o objetivo da exceção preliminar ratione temporis era fazer com que a Corte Interamericana não analisasse parte das alegações feitas pelas peticionárias, principalmente seus argumentos sobre o deslocamento forçado das 31 comunidades.

Como é sabido por quem atua no Sistema Interamericano, a aceitação da exceção preliminar ratione temporis, como ocorreu no presente caso, não impede o reconhecimento do deslocamento forçado, pois essa é uma violação de efeitos permanentes, como destacado no voto parcialmente dissidente dos juízes Mac-Gregor Poisot e Pérez Manrique e na opinião parcialmente dissidente da juíza Verónica Gómez. Entretanto, no presente caso, a Corte Interamericana não reconheceu o deslocamento forçado como violação do artigo 22.1, como amplamente consolidado na sua jurisprudência.

No voto parcialmente dissidente da juíza Gómez, assim como no dos juízes Poisot e Manrique, o deslocamento forçado foi reconhecido. A ausência de motivação para o afastamento desse reconhecimento nos impede de identificar por quais motivos a Corte se afastou do que pareceria a conclusão lógica de sua jurisprudência no tema. Considerando a importância do tema do deslocamento forçado no contexto interamericano, a opção da Corte parece preocupante e devemos estar atentas para acompanhar se isso sinaliza uma possível mudança de posição do tribunal ou poderá ser reduzido a um acidente de percurso.

No voto parcialmente dissidente de Poisot e Manrique, o tema do deslocamento forçado é conectado a dois outros aspectos importantes da sentença: projeto de vida coletivo; e discriminação racial estrutural. Ainda que o texto final da Corte IDH tenha sido mais tímido em ambos os pontos que o voto dissidente destacado, entendo que há aspectos que sinalizam um potencial avanço positivo nos temas.

O tema do projeto de vida coletivo não é exatamente novo na jurisprudência interamericana e alusões a sua dimensão coletiva aparecem ao menos desde o caso Yakye Axa v. Paraguai e em outros votos apartados recentes (vide Pérez Lucas v. Guatemala).

Ainda que o texto da sentença não tenha adotado expressamente a posição de ser o direito a um projeto de vida coletivo um direito autônomo, como defende o voto dissidente destacado, me parece que ao fundamentar-se na perícia psicossocial apresentada por Eiko Masumoto e outros insumos relativos aos impactos das ações e inações estatais, a ratio apresentada pela Corte permite, ao menos, a exploração de um dos aspectos que derivariam do caráter autônomo do direito destacado no voto dissidente: o dever positivo de criar condições para que aquele coletivo possa desenvolver sua projeto de vida.

Ou seja, ainda que o reconhecimento do projeto de vida coletivo como direito autônomo me pareça a opção mais adequada no presente caso, o que também permitiria uma exploração mais profunda do tema da autodeterminação de comunidades tradicionais, o texto final da sentença nos permite ler parte das reparações apresentadas sob esse prisma. Um exemplo é a mesa de diálogo permanente detalhada no parágrafo 319 da sentença e a obrigação estatal de auxiliar às comunidades a obterem personalidade jurídica, se necessário.

Somadas às obrigações de titulação e respeito ao direito de consulta prévia, livre e informada, esse conjunto de reparações pode ser lido como um instrumento para que as comunidades quilombolas de Alcântara possam exercer sua autodeterminação na construção de seu projeto de vida coletivo sem vinculação específica aos direitos mencionados pela Corte IDH ao tratar do tema do projeto de vida. O tema merece maior aprofundamento pela Corte, mas entendo que a sentença ao menos abre espaço para uma discussão frutífera sobre o tema.

Para finalizar meus breves comentários à sentença no caso Comunidades Quilombolas de Alcântara v. Brasil, temos a questão da discriminação racial estrutural. Em outro caso recente (Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes), a Corte IDH já havia tratado da discriminação racial e racismo institucional no Brasil. A importância do presente caso está no seu tratamento em relação a um sujeito coletivo, as comunidades quilombolas de Alcântara.

Ao inserir o caso de Alcântara no contexto geral de privação de direitos de comunidades quilombolas no Brasil, sobretudo no que diz respeito à não titulação de seus territórios e consequente violações de outros direitos convencionalmente protegidos, a Corte sinalizou como é possível a identificação de caso de discriminação racial estrutural na sua dimensão coletiva.

O caso específico de Alcântara possui elementos adicionais que facilitam essa identificação, como o contraste entre o baixo índice de desenvolvimento socioeconômico das comunidades quilombolas da região e as décadas de funcionamento de um centro aeroespacial dentro de seu território tradicional. Ainda assim, considero que a sentença nos permite visualizar uma ratio geral para a abordagem do tema que poderá ser explorado em casos futuros envolvendo povos indígenas e comunidades tradicionais e, quiçá, em relação a outros agrupamentos sociais que não possuam o caráter da tradicionalidade, mas que possam ser também analisados sob a perspectiva coletiva.

Há também outros aspectos interessantes na sentença, como o tema da propriedade coletiva e consulta prévia, que igualmente merecem uma análise em separado. Em linhas gerais, a sentença no presente caso, apesar das críticas acima apresentadas, me parece uma sinalização positiva na evolução do corpus iuris interamericano no que diz respeito a povos indígenas e comunidades tradicionais e nos dá pistas de como tentar avançar no litígio interamericano em casos futuros envolvendo esses grupos.


Crédito da imagem: Corte Interamericana de Direitos Humanos, via Flickr.

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